Boquinha de rua: voz a quem não tem mídia

Por: Criselli Montipó e Suzana Rozendo

 

Este ensaio trata da relação do Boquinha de Rua – um encarte do jornal Boca de Rua originado a partir de um projeto educativo de mesmo nome – com a educomunicação. O projeto  Boquinha é um espaço de convivência e criatividade que tem  por objetivo mostrar o mundo para crianças filhas de sem-teto e  estas crianças para o mundo. Por meio de oficinas, os participantes têm contato com a arte e outras expressões culturais. A forma como as crianças expressam tais experiências resulta no encarte do jornal, de publicação trimestral.

 

Falar sobre a relação entre mídia e população de rua é lembrar de páginas policiais ou de telejornais que noticiam, em geral, assuntos negativos sobre os marginalizados. A saber: pela drogadição ou alcoolismo, seus comportamentos desviantes que fogem ao padrão dito normal pela sociedade ou porque foram mortos, queimados vivos, massacrados.

Em alguns casos, está implícito nos discursos o estereótipo de que na rua existem pessoas que têm como única capacidade o ato de pedir esmolas. O pensador Walter Lippmann (1997), na década de 1920 já dizia que as pessoas agem tendo em vista não a realidade que as cerca, mas “as imagens criadas em suas cabeças” e que muitas vezes, são imagens repassadas pela mídia. Sim, as notícias que circulam pelos meios de comunicação de massa são verdadeiras, mas não se pode afirmar que demonstrem a realidade complexa sobre o que acontece nas ruas.

No entanto, existe em todo o mundo outra relação entre mídia e pessoas em situação de rua que, ao contrário do que se possa pensar, é uma forma de resgatar a dignidade e a autonomia financeira deste grupo em risco social. São os street papers, uma mídia transformadora, que não se configura como assistencialismo, nem como trabalho formal, mas sim uma oportunidade de mudança de vida para homens, mulheres e crianças que vivem debaixo de viadutos ou à margem da sociedade, e que devem, sobretudo, serem pensadas como pessoas.

Street Papers: uma oportunidade de mudança

Street papers são revistas ou jornais que abrem espaço para as vozes das pessoas em situação de risco social e por elas são vendidos pelas cidades do mundo inteiro. O jornal pioneiro destas propostas editoriais foi o Street News, nos Estados Unidos. Mas a revista que padronizou o movimento foi a The Big Issue, em Londres, fundada em 1991 e considerada a maior do mundo4 (INSP, 2011). Foi este periódico inglês que impulsionou o surgimento de International Network of Street Papers (INSP) e de vários outros projetos editoriais semelhantes criados com o objetivo de estabelecer relações entre sujeitos de níveis sociais diferentes, pelo processo de compra e venda dos street papers.

Esta rede mundial de jornais de rua se caracteriza por ser um mecanismo que propõe solução para a pobreza e atua como um brado contra a injustiça, defendendo as necessidades e os direitos dos pobres (idem). Os street papers têm se mostrado como uma poderosa ferramenta de transformação social na vida de pessoas consideradas excluídas da sociedade, haja vista que passam a ser notadas como trabalhadoras e não mais pelos comportamentos desviantes.

Uma ideia simples, que serve como ponte para a saída das ruas:

Street papers não são ciência dura: eles são uma ideia simples que provou ser bem sucedida, como se fosse um trampolim para os sem- teto. Redes nacionais e internacionais de street papers foram formadas para proporcionar um fórum onde ideias, editoriais e práticas de trabalho podem ser trocadas e, onde street papers podem receber aconselhamento e apoio5. (INSP, 2011, tradução nossa).

A INSP conta com uma agência de notícias online, a Street News Service (SNS), que reúne o melhor do jornalismo dos street papers, fornecendo troca de informações, reportagens, serviço de tradução e fotografias6. A SNS tem também como objetivo informar e educar a opinião pública em torno de questões socioeconômicas e de justiça social acerca dos direitos das pessoas que vivem em situação de rua. Ela promove o fluxo de notícias sobre as ruas do mundo com a perspectiva de um jornalismo independente e social.

Estas publicações que circulam nos seis continentes se caracterizam por ser um mecanismo que propõe solução para a pobreza e atuam como um clamor contra a injustiça, defendendo as necessidades e os direitos dos pobres (INSP, 2011). Os street papers também passaram a ser uma alternativa para a propagação dos assuntos que a grande mídia não tem interesse em noticiar.

Em geral, os desabrigados, maiores de 18 anos, ganham os dez primeiros exemplares do periódico como forma de estímulo para iniciar as vendas. Depois, eles compram o jornal ou a revista pela metade ou menos do preço de capa e ficam com o lucro das vendas. Todos passam por um treinamento, recebem crachá e uniforme e devem seguir um código de conduta que implica não vender os periódicos sob efeito de álcool e drogas, não pedir esmolas e não molestar as pessoas na rua.

No Brasil, existem atualmente três street papers vinculados à INSP: o jornal Boca de Rua, de Porto Alegre (1999), a revista Ocas” (2002) que circula em São Paulo e no Rio de Janeiro e o jornal Aurora da Rua (2006), de Salvador. Outras iniciativas, ainda em fase embrionárias, apontam para um caminho de sucesso no País. Desde novembro de 2010, o Movimento Nacional de População de Rua de Curitiba, emparceria com o Núcleo de Comunicação e Educação Popular (NCEP) da Universidade Federal do Paraná (UFPR), publicam o jornal A Laje. Este jornal, embora não seja filiado a Rede Internacional de Street Paper, também se destaca por ser um espaço destinado à opinião das pessoas em situação de rua.

Apesar de haver inúmeras possibilidades de tratar sobre o assunto, neste ensaio, optou-se por destacar um aspecto do street paper pioneiro: o encarte Boquinha, do jornal que circula em Porto Alegre e em Bagé, Rio Grande do Sul.

Sobre o jornal Boca de Rua e as oficinas Boquinha

A Agência Livre para Informação, Cidadania e Educação (Alice) é responsável pelo Jornal Boca de Rua, uma Organização não Governamental que tem como objetivo principal desenvolver projetos de comunicação voltados para a área social. Seus objetivos secundários são: discutir o comportamento, a ética e as tendências da grande imprensa; formar leitores críticos; e contribuir para democratizar e qualificar a informação no país.

Para dar andamento às atividades propostas, a equipe é formada por jornalistas e profissionais de diversas áreas (ALICE, 2011) 7. A ONG é pautada por três linhas de atuação: 1) Dar voz a quem não tem- para dar visibilidade grupos marginalizados e utilizar a comunicação como um meio de incluir, incentivar a autoestima e instigar o debate sobre direitos, formas de organização e alternativas de renda. 2) Discutir a comunicação- para promover o debate entre os profissionais, estudantes e professores de comunicação e 3) Educar para a comunicação- com a realização de oficinas destinadas ao público em geral – em especial educadores, estudantes e pessoas que atuam na área social – com a finalidade de transformar consumidores de informação em leitores críticos, informados sobre a situação da comunicação no país e capazes de multiplicar tais conhecimentos em seus grupos de atuação (idem).

O carro-chefe da ONG é o Projeto Boca de Rua, uma publicação elaborada e vendida por pessoas em situação de rua, na cidade de Porto Alegre. Seu conteúdo é composto por textos, fotos e ilustrações elaborados pelos sem-teto durante oficinassemanais. A objetividade e imparcialidade tão aclamadas nos princípios deontológicos da profissão são deixadas de lado nesta publicação, o que se justifica até mesmo pelo seu caráter alternativo. O dinheiro arrecadado na comercialização do veículo reverte integralmente para os 30 participantes do grupo, constituindo uma fonte alternativa de renda.

Um diferencial marcante neste jornal é o encarte Boquinha. Um grupo de 15 crianças e adolescentes em situação de risco social, ligados aos integrantes do Jornal, participa de oficinas de texto, teatro, artesanato, malabarismo, artes plásticas e música. Além disso, os participantes têm a oportunidade de fazer passeios em espaços culturais e de lazer. O resultado destas atividades gera um encarte infanto-juvenil, o Boquinha.

A participação das crianças nas oficinas do Boquinha, que teve início em 2003, é remunerada e a única exigência é que tenham frequência regular na escola formal. Os pais ou responsáveis recebem uma ajuda de custo semanal em troca da participação e as crianças não podem vender o jornal (ALLES, 2007, p.18).

A jornalista Rosina Duarte8, coordenadora da Alice e uma das fundadoras das oficinas Boquinha explica que o trabalho com as crianças e posteriormente o encarte, surgiu da necessidade que integrar as crianças ao projeto Boca de Rua, do qual pais e familiares já participavam. No início, as crianças se agrupavam na rua mesmo e participavam de atividades lúdicas, similar a uma creche. Assim, a idealizadora do projeto passou a desenvolver brincadeiras com as crianças. Foi então que a ONG resolveu buscar conselhos de educadores de rua e entidades ligadas ao ramo para desenvolver um projeto específico para o público infanto-juvenil, composto por filhos dos integrantes do jornal Boca de Rua:

O Boquinha é um espaço de convivência e criatividade. O objetivo dele é mostrar o mundo para as crianças e as crianças para o mundo, porque sempre se diz que uma criança que não tem acesso a meios culturais, à arte, é uma criança que tem pouca criatividade. Mas nos demos conta que isso é uma grande ‘balela’. Eles são extremamente criativos, extremamente talentosos, curiosos e capazes de ler a realidade de um jeito muito especial9. (DUARTE, 2011).

O grupo realiza oficinas de arte, passeios a parques, museus, zoológicos e outros espaços culturais. A forma como contam, desenham, enfim, se expressam sobre os passeios acaba se transformando num material tão rico que se torna um encarte para o jornal, com periodicidade trimestral. “O encarte é uma consequência deste espaço de convivência” (idem).

O projeto Boquinha ocorre semanalmente em contraturno, às tardes de sextas- feira. Segundo Duarte, os participantes do Boquinha têm padrinhos, ou seja doadores que arcam com R$ 40 por mês, valor repassado aos familiares de cada da iniciativa. O projeto conta com a colaboração de uma equipe multidisciplinar formada por uma jornalista e dois estudantes, um de Jornalismo e um de Psicologia.

Além do afeto participativo, do sentimento de pertença à sociedade, as crianças que estavam fadadas ao insucesso por vivenciarem a cultura das ruas – marcada pelos constantes ir e vir e pelo uso de drogas – ocupam o tempo ocioso com uma atividade educativa e extravasam por meio de poemas, textos e desenhos a situação em que se encontram.

Márcia Almeida Anselmo (2009), ao estudar a representação das práticas socioculturais de crianças e adolescentes do jornal Boca de Rua, descreve um dia típico de oficina. Segundo a autora, o grupo é dividido em crianças e adolescentes. Todos recebem caneta, papel, lápis de cor e conversam sobre algum tema proposto pelas monitoras. Depois de uma grande reflexão acerca do assunto, com duração de aproximadamente 50 minutos, é gerado o produto: um desenho, um poema ou um texto. Antes de ir embora, os participantes ajudam a guardar os apetrechos e se despedem com abraços e beijos nas monitoras.

A criatividade e a expressão crítica são transpostas para o papel, como se pode perceber com o exemplo do texto “A melhor escola do mundo”, elaborado pelas crianças responsáveis pela produção do Boquinha (anexo 1):

Os alunos sentem. Sentem tudo. Mas ninguém ouve. Deviam ouvir a gente porque a gente sabe bem o que nos faz bem e o que nos faz mal. Por isso, vamos dizer aqui como gostaríamos que fosse a nossa escola. Por isso, inventamos a Escola Boca Júnior, a melhor escola do mundo. Veja algumas características:

Não tem professora gritona (curso para ensinar professores a não xingar).

O prédio é colorido e os alunos podem escrever nas paredes: são as “janelas da poesia”.

Os alunos e professores plantam árvores, flores e criam bichos. Além de português, matemática e geografia, tem aula de quase tudo: dança, arte, música, esportes, ensinam até a fazer robô.

Aula de manhã e de tarde, mas recreio a cada duas horas. Campainha é música.

Almoço (panelão de comida e torta de bolacha de sobremesa) e lanches de manhã e de tarde.

Votação para escolher o diretor e para tirar os professores que xingam. Pode entrar todo mundo: mendigos, crianças que não vêem ou não caminham. E são tratados iguais.

Ensina as crianças a pensar, a brincar e a ser gente.

(BOCA DE RUA, 2008)

O encarte explora a imaginação dos participantes e dá a eles a oportunidade de expressar pontos de vista e inquietações acerca de seu mundo. “Após a realização da leitura flutuante, percebemos que os textos e as imagens desenhadas pelo grupo apresentavam elementos da realidade e da ficção” (ANSELMO, 2009, p.129). As palavras dos pequenos redatores deixam explícita a insatisfação com o tratamento que recebem na escola formal, pois, por duas vezes, os alunos citaram que não querem professores que xingam. Além disso, fica claro que se identificam com os “diferentes”- pessoas de rua e portadoras de deficiência- e que almejam que eles não sejam excluídos pela sociedade.

Neste exemplo, perece-se a construção do imaginário do grupo, seus valores e anseios. Além disso, a publicação demonstra a consciência crítica destes pequenos sonhadores.

Boquinha de Rua e aproximações com a Educomunicação

Tendo em vista que a educomunicação surge a partir dos movimentos populares e organizações sociais da América Latina, conforme lembram MOREIRA e DALLA COSTA, (2011), pode-se destacar a relação do Boquinha com este conceito. Neste caso, entende-se educomunicação como a inter-relação entre comunicação e educação, conforme conceitua SOARES (2000), para quem a tal metodologia pedagógica ocorre por meio da interdiscursividade e da interdisciplinaridade.

A interdiscursividade, vale dizer, o diálogo com outros discursos, é a garantia da sobrevivência do novo campo e de cada uma das áreas de intervenção, ao mesmo tempo que vai permitindo a construção de sua especificidade. Este interdiscurso é multivocal e o seu elemento estruturante é a polifonia. A alteridade é a dimensão constitutiva deste palco de vozes que polemizam entre si, dialogam ou complementam- se. (SOARES, 2000, p. 22)

Neste sentido, Soares lembra que Paulo Freire representa sólido pressuposto político-pedagógico para se pensar a inter-relação comunicação e educação. No clássico Extensão ou comunicação? Freire focaliza os processos comunicacionais que se inserem no agir pedagógico libertador.

Todo ato de pensar exige um sujeito que pensa, um objeto pensado, que mediatiza o primeiro sujeito do segundo, e a comunicação entre ambos, que se dá através de signos linguísticos. O mundo humano é, desta forma, um mundo de comunicação” (FREIRE, 1975, p. 66).

Duarte (2011) considera que há uma identificação do projeto Boquinha com o pensamento de Paulo Freire. Ela ressalta que a relação com a educação se dá porque a ferramenta do projeto é a comunicação. “Ela não é usada especialmente para educar, mas a comunicação fatalmente é educativa. Na medida em que você troca saberes, conhecimentos, experiências e afeto, está praticando a comunicação na forma mais pura, e é claro que está educando” (2011).

A jornalista explica que o projeto transforma o olhar. A iniciativa mostra a realidade de forma diferente e possibilita que a comunidade possa enxergar coisas que não via. Paulo Freire fala da importância do ato de ler, de dividir e expandir saberes. Freire (1975, p. 69), destaca a comunicação justamente como meio de transferência de significados. “A educação é comunicação, é diálogo, na medida em que não é a transferência de saber, mas um encontro de sujeitos interlocutores que buscam a significação dos significados”.

E é na transferência de significados, na construção da cidadania, por meio da inter-relação entre comunicação e educação, que o projeto Boquinha de Rua destaca-se como iniciativa sólida no campo da educomunicação. A partir de saberes compartilhados visa a dar voz e visibilidade aos filhos de sem-teto que, à contramão dos processos da mídia de massa, demarcam seus espaços – físicos e intelectuais – na sociedade que os marginaliza.

 

Referências

  • ALICE. Agência Livre para Informação, Cidadania e Educação. Disponível em: . Acesso em 5 janeiro 2011.
  • ALLES, Nathália. A voz dos integrantes do jornal Boca de Rua:uma prática de comunicação comunitária. Trabalho de Conclusão de Curso de Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2007. Disponível em: . Acesso 11 agosto 2011.
  • ANSELMO, Márcia. A representação das práticas socioculturais de crianças e adolescentes e jornal Boca de Rua: a experiência do Boquinha. Dissertação de mestrado. Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2009.
  • BOCA DE RUA, número 28, Abril/Maio/Junho. 2008.
  • DUARTE, Rosina. [Porto Alegre]. Informação oral. 25 agosto 2011.
  • FREIRE, Paulo. Extensão ou comunicação? Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1975.
  • INSP. International Network of Street Papers. Disponível em: . Acesso em 7 fevereiro 2011.
  • LIPPMANN, Walter. Public opinion. New York: Free Press, 1997.
  • MOREIRA, Anderson Luiz; DALLA COSTA, Rosa Maria Cardoso. Os Movimentos Populares no Brasil e sua relação com a Educomunicação. In: III Encontro de Pesquisa em Comunicação da Universidade Federal do Paraná. 2011.
  • SOARES, Ismar de Oliveira. Educomunicação: um campo de mediações. In: Comunicação & Educação, Universidade de São Paulo, (19): 12 a 24, Setembro/Dezembro de 2000. Disponível em:. Acesso em 27 de agosto de 2011.
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